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Ela dança

por Daniel Amorim
Desenho de Ariyoshi Kondo.

Daniel Amorim é formando em Comunicação Social-Jornalismo pela Universidade Federal do Amazonas (Ufam) e já trabalhou em diversos veículos impressos, portais e assessorias de imprensa. Seu primeiro livro, a coletânea de narrativas breves Zona de sombra, ganhou o Prêmio Literário Cidade de Manaus 2018 na categoria contos. O livro foi lançado pela editora Penalux em 2020. Tem outro livro de contos pronto e está escrevendo um romance.


A atriz de dezenove anos está em turnê pelo Brasil. Faz o papel da garotinha trevosa com lábios de batom preto e uniforme de colégio interno. Foi beneficiada pela baixa estatura e pelo rosto pálido e infantil. Seus cabelos dividem-se em tranças negras que brilham sob os holofotes. Braços cruzados e expressão carrancuda nos outdoors e cartazes colados nos muros da cidade. Ela povoa os sonhos de idosos recém-divorciados e estudantes não raro flagrados em pleno ato masturbatório por mães dedicadas. Elas sentem-se confusas, buscam aconselhamento em orientadoras educacionais e pastores evangélicos, que recomendam a proibição de toda e qualquer referência à maldita personagem, cujo principal objetivo é desvirtuar nossos jovens e crianças, entregando-as de bandeja às garras de Belzebuth.

A atriz de dezenove anos diz que a montagem (inspirada num dos episódios mais polêmicos de um enlatado moderninho de streaming, com violência e sexo) é tosca e que seus colegas de palco sofrem de uma gritante falta de técnica & talento. Ela, no entanto, limita sua opinião ao espelho do camarim improvisado num contêiner que fede a maconha e mijo. Xinga entredentes a senhora que interpreta sua mãe, a atriz de cinquenta e seis anos que tenta (e consegue) esconder a idade sob camadas de maquiagem importada. Na verdade, a atriz de dezenove anos sente inveja do nariz afilado da mulher, um item na fisionomia alheia que cobiçou desde criança, pois considera um faro pontudo o máximo do charme e do glamour. 

A atriz de dezenove anos prefere manter distância do ator de XX anos que encarna seu pai, um agente funerário – não há indicações exatas a respeito da profissão do personagem, mas abraçou a ideia desde que assistiu ao filme original que inspirou a série e a montagem, há um ano e meio. O rapaz gordo, que usa recursos cenográficos que o transformam num cinquentão, molha os lábios enquanto movimenta os quadris num gingado lascivo ao vê-la atravessar os bastidores. Hmmm hmmm hmmmmmm, ele sussurra, oculto pela penumbra das cortinas que se abrirão em segundos, a figura de um vampiro esfaimado sobrevivendo após décadas sem ingerir o elixir da vida eterna. 

A atriz de dezenove anos largou o emprego de recepcionista numa agência de publicidade para realizar seu sonho: virar atriz, evidentemente sob protestos do pai, ex-professor de História e agora dono de uma lavanderia. Em represália, ele anunciou que cortaria o financiamento do carro da atriz de dezenove anos, mas reconsiderou a tática após longas conversas com a esposa. A atriz de dezenove anos pensava que, apesar das incertezas da vida artística, jamais trocaria as turnês pela rotina massacrante de uma agência, com seus clientes abusivos e funcionários egocêntricos. Foi com muita perseverança que ela conseguiu o papel, esfregando na cara dos avaliadores o certificado do curso de artes cênicas obtido numa escola picareta, atualmente dedicada à formação de coaches, após uma longa madrugada na porta do estúdio onde fariam os testes de elenco. 

A atriz de dezenove anos responde com evasivas às perguntas sobre o teste do sofá. Não confirma nem nega. Prefere manter a aura de mistério e sacanagem diluída na imagem de uma novata. É óbvio que ela jamais aceitaria um convite sexual em troca de um papel, mas aproveitou outra carta na manga para conquistar a vitória. Depois do teste, e a par dos vícios da equipe fartamente divulgados em comentários nas redes sociais, retirou um pequeno saco plástico com fecho de ziplock do bolso e aspirou ali mesmo, na frente de um trio de rostos entediados, cerca de duas gramas de cocaína com 70% de pureza, uma raridade no mercado de substâncias ilegais. Ofereceu ao júri uma pazinha de tomar sorvete como bônus. 

A atriz de dezenove anos gastou alguns minutos e mensagens de aplicativo até encontrar, com o auxílio de amigos, o contato de um traficante que fornecesse o produto ideal. Trancou-se no quarto e resolveu fazer o teste de eficácia por conta própria, embora não usasse a droga desde o último ano do ensino médio. Ali, deitada no lençol com desenho de fadas, sentiu a decolagem rumo ao estrelato. Flashes de câmeras estouram diante de sua passagem em um tapete vermelho do festival de cinema de Gramado. Usa uma echarpe de pele de urso e brincos de pérola que tocam suavemente seus ombros. Exibe um penteado loiro besuntando de laquê, um castelo onírico e sinuoso em formato de interrogação. O nariz afilado, esculpido pelas melhores técnicas de rinoplastia. O sorriso impecável. Enfim, os anos de sofrimento com o aparelho ortodôntico deram um ótimo resultado.

A atriz de dezenove anos aceitou de imediato o convite para jantar numa pizzaria após ser aprovada no teste. Os membros da equipe de produção mostravam-se gentis e interessados na vida particular da nova estrela. E o mais importante: nunca faziam caretas ou debochavam quando ela pedia fatias de sabores exóticos, como abacaxi e morango confeitado, seus preferidos. Ela sentiu-se abraçada num sentido retroativo – como se nunca tivesse enfrentado a rejeição e o complexo de inferioridade da adolescência. O diretor, um senhor de barba grisalha rala e óculos desnivelados, despejava doses de vinho tinto na taça da atriz de dezenove anos a cada quinze minutos, entremeando a oferta com perguntas sobre a autoria de diálogos de peças famosas. Ela não acertou nenhuma resposta, o que garantiu um porre que a deixou amortecida ao longo da manhã seguinte. 

A atriz de dezenove anos pensa que seus colegas invejam sua juventude e facilidade para memorizar diálogos. Antes de dormir, tem surtos de paranoia e imagina que vão dispensá-la em breve, após a vingança elaborada pelo ator que interpreta seu pai, magoado pela falta de reciprocidade aos ataques de luxúria. O pesadelo se repete em noites alternadas: agentes da Polícia Federal batendo com violência na porta do quarto e em seguida derrubando-o, seus pulsos algemados, eu avisei, eu avisei, berra o pai, abraçando-se à mãe que desaba em prantos sobre os joelhos: sua filha é acusada de traficar cocaína e destruir centenas de famílias, usando o disfarce de uma adorável atriz. 

A atriz de dezenove anos resolveu dar uma pausa no consumo da droga, que havia retomado para enfrentar o nervosismo que aumentava a cada apresentação. Marcou sessões de psicanálise por videochamada, mas o processo de cura é lento, o doutor avisou, e ela anseia por resultados. Aproveita o horário do almoço para consultar (às escondidas, de preferência no banheiro, pois teme a reação do diretor da peça) um livro de autoajuda que se tornou uma espécie de guru em celulose. Um decálogo de orientações para viver melhor, sem traumas ou dificuldades. Mas ela percebe que as fórmulas garantem um sucesso limitado, e então volta ao ponto de partida. Está exausta. 

A atriz de dezenove anos experimenta um turbilhão de sentimentos que envolvem excitação, alívio e ansiedade por conta da ótima audiência da montagem. A cada noite fica mais difícil projetar a voz acima da balbúrdia promovida por crianças e adolescentes, que aplaudem, gritam e soltam gargalhadas, inclusive nos diálogos mais horripilantes (ou talvez justamente por isso). Fãs se acotovelam na saída dos teatros em busca de autógrafos e fotos que divulgarão nas redes sociais. No entanto, ela ainda não superou o mal-estar que percorre seus membros como um fio desencapado ao executar a ridícula dancinha da protagonista no clímax da peça. Os dedos da mão postados como garras, sacolejando os quadris de um lado para o outro enquanto os pés se movem na direção contrária, a cabeça jogada para o alto como uma vítima de possessão demoníaca e de volta à posição inicial, dez vezes seguidas. Ao fundo, uma trilha bate-estaca produzida de última hora devido a problemas com direitos autorais. Gostava de entoar o roteiro em voz baixa enquanto mergulhava em sais de banhos nos quartos de hotéis. 

A atriz de dezenove anos apaixonou-se pelo repórter de cultura de um jornal de província. Cavanhaque ruivo, 1,80 metro de altura, olhar oblíquo de galã de cinema antigo e voz anasalada. Ela poderia jurar ter escutado o som de trombetas e harpas angelicais tão logo o jornalista, que passava por um período de experiência, apareceu na sala de entrevistas da redação. Ficou boquiaberta. Mal conseguiu pronunciar as sílabas da primeira resposta (Qual a sua inspiração para compor a personagem?). Parecia hipnotizada, e o jovem, inflamado pela overdose de atenção, considerou a sério o arroubo de ousadia da atriz, que o convidou para curtir a noite juntos numa discoteca frequentada por novos ricos. Apesar do cansaço, a atriz de dezenove anos resolveu encontrar o mancebo na frente da casa de eventos, . Mal sentaram-se nas mesas, ele pediu dois enormes hambúrgueres mergulhados em queijo cheddar num recipiente de alumínio e batatas-fritas rústicas. O repórter devorou os sanduíches de bacon e carne artesanal com uma voracidade assustadora até para a experiência da atriz de dezenove anos, acostumada à selvageria fast-food praticada por amigos laricados após as noitadas em sua terra natal. Embora a encenação fosse um tanto grotesca (o rapaz falava cuspindo pedaços de repolho), havia um clique de espontaneidade primitiva naquela atitude que a deixou levemente encantada. Dançaram música techno sob os golpes da iluminação estroboscópica. A atriz de dezenove anos lamentou a ausência de um quadradinho colorido na carteira. Após beijar o jornalista na entrada do banheiro masculino, ela despejou um vômito intenso no vaso sanitário e mastigou uma porção de creme dental com carvão ativado para disfarçar o mau-hálito. 

A atriz de dezenove anos sentiu uma afeição instantânea pelo garoto que encarna seu irmão, o gordinho de camiseta listrada com suspensório e olheiras profundas. Quase um cadáver ambulante, o pai do personagem repetia, apontando e soltando um riso debochado enquanto mastigava uma rosquinha embebida em leite. Ela tentou estabelecer uma relação de amizade baseada em confidências de cunho íntimo, porque sentia-se isolada e o considerava o único integrante do elenco digno de confiança. Mas o jeito introvertido do rapaz dificultava longas conversas. Ele apenas coçava a cabeça após escutar monólogos sobre relacionamentos traumáticos, lembranças de férias tristes na infância e compulsão alimentar. A atriz de dezenove anos sentiu-se traída quando soube que ele abandonou a trupe e juntou-se a uma seita esotérica no interior de Minas Gerais, o que exigiu uma pausa na rotina dos ensaios. Anos depois, já casada e mãe de duas filhas, ela recebeu um longo e-mail do ex-companheiro de cena agradecendo o apoio “naqueles meses de loucura e deliciosa perdição”. Em anexo, a foto de um cabeludo magricela vestido numa bata translúcida com um alvo desenhado na testa, símbolo da iluminação através da abertura do chacra frontal, e as palmas das mãos encostadas uma na outra, imitando a pose do polêmico líder espiritual acusado de abusar de centenas de mulheres.  

A atriz de dezenove anos emocionava-se com as mensagens de apoio e ternura enviadas pela mãe, orgulhosa do sucesso da filha. A genitora, no entanto, se preocupava com as “liberdades da vida artística” que poderiam arruinar todo o cuidado e dinheiro investido nos melhores colégios católicos. Perguntava se a filha já havia experimentado aquelas drogas anunciadas como uma espécie de ameaça nuclear em programas dominicais. Mal terminava o noticiário, a mãe enviava o alerta seguido de vários pontos de exclamação e emojis dramáticos. A distinta senhora também monitorava os relacionamentos sexuais da filha. Temia que ela fosse enganada pelas inclinações pouco ortodoxas do mundo liberal e rezava novenas durante as madrugadas para afastá-la dos perigos da promiscuidade. Mal sabia que a garota de dezenove anos havia detestado a experiência de beijar uma colega de classe, a loira mais cobiçada da turma que nutria uma paixão desmedida pela colega, frustrando assim a ideia de abraçar uma conduta não-rígida, não-binária e descolada pelo resto da vida.

A atriz de dezenove anos começou a ser monitorada por caçadores de talento que trabalhavam em canais de streaming. Ela foi sondada para coestrelar uma série inspirada na viúva de um dos maiores traficantes do Rio de Janeiro, vendida pela família ao criminoso quando contava com apenas 14 anos de idade. A mulher assumiu os negócios após a execução do manda-chuva e conseguiu triplicar o faturamento com vendas de ecstasy em festas de música rave, lançando mão da astúcia e de um visionário senso de oportunidade para aproveitar a emergente demanda por alucinógenos. A atriz de dezenove anos sonha diuturnamente com a festa de estreia da produção, em meio a celebridades que cultua desde a infância, antes de arrastar o repórter ruivo, que agora veste um smoking digno dos profissionais da grande imprensa, até o banheiro do local da cerimônia e aplicar-lhe um generoso boquete. Enfim, o reconhecimento. Mas o convite oficial demora a chegar. Azucrina o produtor em aplicativos de mensagens, mas não obtém nenhuma resposta oficial.

A atriz de dezenove anos está enfastiada da badalação em torno da garotinha macabra e sua família excêntrica. Torce para que a turnê encerre logo e consiga algumas semanas de férias antes de embarcar em novas aventuras pelo país. Não entende o distanciamento do repórter que, a exemplo dos magnatas da indústria cultural, também ignora seus pedidos de atenção. Avalia que o seu confidente silencioso talvez tenha tomado a decisão acertada ao mergulhar nos abismos do autoconhecimento (pelo menos ele tentou, ela argumenta para si própria). Faz um esforço para encontrar algum escape – acroyoga, DMT, xamanismo – porém o interesse esgota-se em poucos dias, dando lugar ao sentimento de absurdo que permeia a rotina. Dedica-se ao estudo da filosofia no tempo livre e às teorias sobre os novos estados de consciência motivados pela inteligência artificial e neuroprogramação. Um apêndice do manual que havia lido na biblioteca da escola, meio por acaso, meio por falta de tarefas a entregar: Como influenciar pessoas e fazer amigos. Uma edição com a capa detonada e rabiscos nos cantos das páginas, em tinta azul, descoberta na época em que seu irmão caçula morreu de infecção hospitalar. Tinha apenas cinco meses de idade. 

A atriz de dezenove anos descobriu uma nova fonte de realização pessoal e profissional: recomendar toda sorte de produtos – desde ração para hamsters até um spray revolucionário para permanentes – em suas contas na internet. Aprendeu a editar stories praticando num aplicativo para celulares, e orgulhou-se de um videoclipe meio conceitual que elaborou para uma dupla de hip hop, o que lhe rendeu inclusive elogios de um dos MCs num programa de calouros da TV aberta. A atriz de dezenove anos viu sua renda mensal triplicar apenas exibindo seu rosto e sua voz em produções curtas, cheias de efeitos de transição espertinhas e música pop obscura, e desse modo conseguiu renda suficiente para dividir o aluguel de um apartamento perto da última estação de metrô na maior capital do país. A colega, indicada por uma prima da atriz de dezenove anos, era caloura de medicina. Passava a maior parte da semana trancafiada no quarto – a atriz de dezenove anos desconfiava que a colega sofria de algum transtorno mental, porque escutava diferentes tons de voz pronunciados pela mesma pessoa, que variavam do gutural ao canto lírico, sem qualquer ritmo ou linha melódica definida, o que já eliminava a hipótese de uma ambição artística em vias de aperfeiçoamento. A atriz de dezenove anos vacilava ao pensar na melhor tática de abordagem que não deixasse a estudante perplexa ou irritada. Colava os ouvidos na porta e aguardava os primeiros sons desarticulados que remetiam aos ecos de um pesadelo, aos sons de um filme de terror à distância. Certa madrugada ela não resistiu e acabou batendo à porta do quarto ao lado. Depois de uma longa espera, a colega veio atendê-la com a visão turva e voz de quem havia sido catapultada dos lençóis durante um sono revigorante. Estranhou o relato da atriz de dezenove anos, como se ela estivesse se referindo aos hábitos do nativo de algum país obscuro do Oriente Médio. Não sei do que você está falando, rebateu a estudante. Ambas ficaram se encarando, imóveis sob o limiar da porta. Um cachorro latia na vizinhança.

A atriz de dezenove anos executava seu bailado hipnótico, tradicionalmente acompanhada pelas crianças, quando interrompeu os movimentos com um gesto de dança flamenca, desvirtuando-se do roteiro original e pedindo a atenção do público. Os atores no palco e o staff da produção pararam de respirar. Ofegante, a atriz de dezenove anos caminhou a passos firmes até a ribalta. Fez um longo discurso a respeito dos direitos civis, da violação das liberdades individuais em países sob o comando da esquerda e da direita corruptas, do aquecimento global. A perseguição e morte a casais homoafetivos, vítimas preferenciais de assassinatos durante a madrugada. A lamentável situação financeira dos estudantes universitários da periferia. A ausência de políticas públicas para animais de rua. Os espectadores ouviam com interesse redobrado, mais até do que na encenação da montagem. Os atores no palco e o staff da produção pararam de respirar. Era a primeira vez que lidavam com esse tipo de reação inusitada por parte de um membro da equipe. Precisavam intervir rapidamente, mas não conseguiam articular nenhuma estratégia ou plano de última hora. Uma criança começou a chorar, seguida por outra e mais outra. Esquerdalha, berrou um espectador antes de levantar-se e sair trotando em direção à saída. Patricinha alienada, tá passando pano, afirmou um pai. Ela prosseguiu a manifestação e, a certa altura, percebeu que já não escutava a própria voz. Os ruídos do ambiente e do trânsito se converteram numa sinfonia desconexa e abafada. Era o momento do ato grandioso, o sacrifício final.


Desenho de Ariyoshi Kondo.

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